– E aí, Darcy, vamos nos encontrar hoje à noite?
– Vamos sim, já confirmei com Cris! Vou levar uma garrafa de vinho.
– Mas não é aquele que no outro dia parece que passou uma carreta por cima da cabeça não, né?
– Não, imagina se eu ia fazer isso com a gente. Vou levar vinho bom, produzido no Vale do São Francisco!
– Cris falou que ia levar queijo, quero ver! Eu vou levar salada de alface, beleza?
– Ah, tá! Então vai ser massa!
À noite três pessoas se encontraram embaixo do pé de jequitibá-rosa para uma reunião informal.
– Fala, Manu! Como é que tá?
– Eu tô bem! – Respondeu Manu, fazendo gesto de reverência aproximando as mãos e encurvando um pouco a cabeça.
– Cara, trouxe o vinho e esqueci de trazer saca-rolha!
– Rá, rá, rá! A gente coloca a garrafa no centro e fica adorando!
– Podíamos fazer isso caso eu não tivesse uma carta na manga. – Falou Cris, mostrando um canivete suíço.
– Aí é providência, valeu! Também vai servir pra cortar o queijo!
– O queijo já trouxe cortado! Eu sou demais!
– É muita autoestima!
– Trouxe um mix de queijos, bem!
– Uhuuu! Finesse!
Depois que o vinho foi aberto, todos se serviram e consumiram a salada, principiou a discussão.
– Bom, galerinha, negócio é que temos que fazer logo esse trabalho de Filosofia. A prof de Direito Constitucional já tá passando outro trampo.
– E pra semana tem prova de Penal, é fumo.
– Acho que podemos incluir no trab nossas experiências familiares, pois todos temos pessoas conhecidas que foram libertas de situação análoga à escravidão.
– Pois é, podemos começar por aí. Situação análoga à escravidão é um termo que foi inventado pra suavizar, pra mascarar a gravidade do problema. Ter escravidão no Brasil de 2023 é absurdo demais.
– Podemos citar isso no trab, também acho polêmico isso. Na prática as pessoas não têm liberdade de ir e vir, trabalham feito um condenado, não recebem pelo que produzem e tem sua vida ameaçada a todo instante.
Darcy parou para encher o copo e beliscar uns queijos.
– Olhe, minha vó até hoje acorda tendo pesadelos no meio da noite. Ela repete o nome da “ex-patroa”, pedindo pra ela parar de bater, que não vai mais errar, que não foi ela que fez aquilo...
– E sua vó foi liberta faz tempo, né?
– Uns trinta e cinco anos, minha mãe só tinha um ano quando minha vó conseguiu fugir. – Contou Manu, já com os olhos marejados. – Não sei como ela conseguiu, com uma filha pequena, numa cidade desconhecida, sem recursos e desconfiada de tudo e de todos.
– Deve ter sido muito difícil mesmo! Como foi que ela foi submetida ao cativeiro?
– A mãe dela era pobre, com seis filhos pequenos, o pai se mandou. Viviam de pedir esmolas e fazer alguns serviços que apareciam. Um dia minha vó foi pedir esmola na casa de uma mulher que logo procurou a minha bisa pra tratar de um assunto. Disse que minha bisa não precisava se preocupar, pois sua filha seria bem tratada, teria comida boa, iria pra escola e coisa e tal. Quando vó se mudou pra casa da mulher a realidade foi bem diferente, foi tudo ao contrário. Na época vó tinha nove anos e essa família se mudou com ela pra capital. Nunca mais vó viu a mãe, mas soube que ela teve muito desgosto por ter entregado a filha.
– Essas histórias são muito tristes, mas temos que tirar algum aprendizado. Temos que transformar todo esse sofrimento em força, só assim venceremos os fantasmas do passado.
– Tem vinho ainda? E salada? Pelo jeito a noite vai ser longa.
– E você, Cris? Você vivenciou essa situação pessoalmente, o que você tem a dizer?
– Eu fui trabalhar em uma fazenda no Sul do país, o trabalho era puxado. Nós acordávamos as quatro horas pra ir pro campo. Tinha que pegar condução e viajar cerca de uma hora. Nos davam umas fardas verdes e encharcadas pra vestir e cestos pra juntar as frutas. Tínhamos que encher os cestos, e depois outro, e mais outro... Dependia do capataz, ele é quem ditava o ritmo. Quem não fosse trabalhar pagava multa, quem reclamasse pagava multa, por qualquer motivo se pagava multa. Descontados os alimentos que comíamos e outros gastos, no fim do mês não tínhamos nada a receber, alguns ficavam até devendo. E nossa comida geralmente era farofa ou comida estragada. E pagávamos por essa comida altos preços, tudo era caro na quitanda.
– Mas vocês receberam alertas de muitas pessoas pra não irem!
– Recebemos, mas olhe meu caso. Estou em situação de desemprego há dois anos, meu filho já nasceu numa circunstância difícil. Muitas dívidas e a promessa de um bom salário, resolvi arriscar. Três mil reais não dá pra dispensar assim, não é fácil! Quando chegamos lá o que encontramos foi trabalho exaustivo, tortura pra quem tivesse causando problemas e nada de salário.
– Mas agora vocês vão receber uma boa indenização, não é mesmo?
– Olhe, vamos receber, mas quando? Voltei pra casa com quinhentos reais no bolso, agora estou novamente sem emprego e sem dinheiro. Terei que esperar pela justiça, que demora muito.
– É verdade, mas vamos ver se conseguimos aquele estágio. A prioridade é sua, você é quem mais tá precisando.
– Se a facu não fosse pública, eu realmente não teria chance. Até pra manter os estudos tá difícil, se não fosse a ajuda de vocês...
– Eu andei dando uma pesquisada em artigos científicos sobre sequelas de torturas, e sobre sequelas da escravidão...
– Mas peraí, Darcy! Primeiro vamos falar das nossas experiências, depois partimos pras teorias. Fale um pouco de você.
– Meu caso é complicado, realmente não gosto de falar. Pai decidiu acabar com tudo há cinco anos, mas ainda não superei! Quando ele voltou do cativeiro não falava coisa com coisa, agredia todo mundo por qualquer motivo. Minha mãe sofreu muito e já estava pensando em separar, pois o sofrimento era grande, principalmente pra nós, as crianças. Outras vezes ele ficava depressivo, não queria se alimentar, não saía da cama. Ele tinha o corpo todo marcado, cicatrizes de cortes e de queimaduras. E o espírito dele estava em frangalhos, recebeu indenização, mas não deu pra recuperar a saúde e a paz. Até hoje minha mãe chora a noite, no silêncio do quarto e ora pedindo a Deus pela alma do pai.
Dito isso, Darcy tirou da bolsa um calhamaço com a pesquisa realizada na noite anterior. Respirou fundo para renovar as forças e continuou:
– Destaquei os principais pontos que falam sobre as sequelas da escravidão. Um dos aspectos mais marcantes da escravidão é a tortura, sendo que antigamente os escravocratas não se preocupavam tanto em não deixar marcas, hoje eles usam mais spray de pimenta, arma de choque, ameaças...
– Técnicas que deixam marcas terríveis, porém quase sempre invisíveis. Isso para evitar investigações posteriores, quando a situação fica mais complicada eles preferem “finalizar” o trabalhador para não correr riscos. Bom, acabou o vinho.
– Por mim tá beleza, melhor não beber muito, amanhã tenho que ralar.
– Pra mim já deu também, vou agora hidratar.
– Mas ó, galera, tem uma parada que eu achei cabulosa. É o re-trauma, onde a vítima é submetida a situações que trazem de volta à memória tudo que sofreram, seja por reencontrar o seu algoz ou até mesmo um tratamento médico mau direcionado.
– Acho que era isso que acontecia com o pai quando ele ficava mais depressivo, algum gatilho disparava as lembranças dele. E pensando bem, geralmente acontecia depois que ele voltava da igreja. Ele só ia de vez em quando, aí depois ficava de mau humor.
– Talvez ele se culpasse, ou talvez ele culpasse Deus! Os carcereiros do seu pai não responderam pelos crimes que cometeram, né? Pagaram só uma pequena indenização e pronto! Pois então, é como se eles não tivessem cometido crime algum!
– Ainda tem salada, vocês vão querer?
– Sim, claro! Tem queijo também, não sentiremos fome!
– E a digitação do trab, quem vai fazer?
– Você! Quem fala, assume!
– Hummm, gracinha!
– A gente faz assim, eu começo, depois passo pra Manu, e finaliza com Cris! Colocaremos nossa contribuição em tópicos separados e depois a gente se reúne de novo para finalizar.
– Beleza, acho que funciona assim. Temos interesses em comum e queremos fazer um bom trabalho, com diferencial de abordagens inéditas. Só não vale usar IA!
Riram e Darcy se levantou, dizendo:
– O Brasil tem umas controvérsias na sua história. Getúlio Vargas é conhecido como presidente dos pobres, mas foi ele quem popularizou a criminalização dos comunistas. Leis como a CLT são da época dele, talvez produzida com inspiração em leis estadunidenses. Mas ao mesmo tempo ele fazia campanha contra o que ficou conhecido como “Ditadura do Proletariado”!
– Isso é ridículo! Ditadura do proletariado? Como assim?
– Quem acredita nisso nem raciocina mais! Talvez nunca tenha raciocinado na vida! A “Elite” vai ser vítima de uma ditadura do proletariado?
– Não faz sentido! O que acontece é que em regimes governamentais controlados por reacionários existe um aumento de casos de desrespeito aos direitos humanos, e consequentemente, o trabalhador perde direitos. Depois pra recuperar esses direitos dá trabalho, mas dizer que o proletariado impõe uma ditadura? Aí já é apelação demais!
– Uma parte da esquerda endeusa Getúlio.
– Esquecem de olhar pra atuações de Getúlio em episódios tristes da nossa história como o manicômio de Barbacena e outros, além dos massacres dos Sítios Caldeirão e Pau-de-pedra, onde muita gente sofreu horrores e muita gente foi morta de forma muito estúpida pelas forças do exército brasileiro.
– A Constituição de 1934 diz no artigo 138 que cabe a União, aos Estados e aos Municípios, alínea b: estimular a educação eugênica!
– Uau! Essa eu não sabia! Sei que, de acordo com a Lei de Educação do Brasil de 1837, os negros eram proibidos de frequentar escolas. E atualmente existem pessoas que são contra as cotas raciais, por pura ignorância, claro!
– Vocês já ouviram falar da Lei do Boi? – Perguntou Cris, ao que Darcy e Manu responderam meneando a cabeça.
– A Lei do Boi foi uma lei proposta por um deputado da Arena nos anos de chumbo grosso da ditadura militar e vigorou entre 1968 e 1985. Essa lei reservava vagas para agricultores e seus filhos no ensino público federal, tanto em cursos técnicos como no ensino superior. Foi a primeira lei de cotas brasileira. E favorecia os grandes proprietários de terras, quem fosse boia fria não tinha acesso fácil.
– E a população negra era proibida de ser proprietária de terra, é tudo emaranhado de forma a favorecer uns em detrimento de outros.
– É tudo muito triste e revoltante! Enfim o que vamos colocar de propostas no nosso trab?
– Eu pensei em propor intervenções artísticas pra alertar e prevenir que pessoas caiam em situações de cativeiro, e também pra ajudar no tratamento de quem já vivenciou essa experiência.
– Que ótima ideia! Podemos organizar grupos de teatro, de música, de pintura, de poesia... Tem um baú de possibilidades!
– Acho que seria legal fazer um projeto comunitário e assim as pessoas podem se ajudar. Eu posso dar aulas de capoeira, cada um entra com o que tem e depois as pessoas vão chegando.
– É muito bonito, mas temos que ter os pés no chão. Vamos trabalhar nesse projeto, colocar as bases e depois conversar com as pessoas. Precisamos de ajuda com essas ideias.
– Temos no Brasil, desde que os europeus vieram pra cá, uma história de exploração, sofrimento e destruição. Muitas violações dos direitos humanos que nunca foram tratadas como merecem. Isso deixou enormes feridas abertas, que como não são resolvidas ficam contaminando o país. As novas gerações são facilmente levadas a crer que tudo bem machucar o coleguinha, desde que ele seja mais pobre ou mais fraco.
– Foi bom você tocar nesse ponto, Darcy! – Exclamou Manu. – O costume de explorar o trabalho dos outros em proveito próprio é antigo. As vezes o escravocrata se impunha com violência física, outras vezes a escravidão era meramente psicológica. Mas existiu escravidão na história de vários povos.
– O que você quer dizer? – Interrompeu Cris.
– Bom, vou me explicar melhor. Observe civilizações como a egípcia ou a maia. Não existem indícios encontrados até hoje que indiquem escravidão como existem nas culturas de plantation, por exemplo. Certo?
– Belê! E esses povos construíram grandes templos, fizeram grandes realizações.
– Mas é aí que eu quero chegar. Pra construir esses grandes templos foi envolvido muito trabalho, muita mão de obra foi empregada. Observando a construção de grandes templos atualmente vemos trabalho escravo?
– Não, acho que não.
– Se tiver é muito velado, escondido. O que não duvido que possa acontecer, mas eu também acho que nesse caso não acontece. Explorar trabalho escravo nas grandes cidades, em larga escala, é complicado hoje em dia.
– Pois é! Mas as grandes construções acontecem, e com muita pompa. Se observarmos os fiéis, a maioria é pobre, vivem em situação difícil. Mesmo assim se sacrificam, tiram de onde não tem pra contribuir na construção do templo. Acreditam na recompensa futura, são treinados todos os dias a esperar o galardão divino.
– Isso chama escravidão psicológica. – Pontuou Manu.
– Pois é. Acho que sei onde você tá querendo chegar. A escravidão psicológica sempre existiu, talvez antes mesmo da escravidão com emprego de violência física.
– É isso! Vocês são brilhantes! Imaginem o povo trabalhando dia após dia pra levantar aquelas obras, que são as maravilhas da humanidade, e abastecê-las com todo o ouro e toda riqueza que comumente é armazenada nesses templos.
– Sem contar que a obtenção desses materiais geralmente envolve processos complicados, onde oferecem riscos aos trabalhadores, destroem o meio ambiente e sacrificam animais. A extração do ouro, por exemplo, sempre foi agressiva pra todos. – Destacou Cris.
– E tudo isso pra quê? Pra ostentar? Pra que os deuses ou os “homens santos” possam repousar em berço esplendido, tanto em vida como após a morte? Enquanto isso os fiéis são sacrificados com a promessa de regozijo na próxima vida?
– É verdade! O tanto de ouro que é encontrado nas tumbas dos faraós é absurdo, além de outras riquezas. Até pessoas e animais eram mortos pra acompanhar as “divindades” na outra vida. – Darcy concorda. – Mas voltando ao Brasil, os escravos eram explorados tanto direta como indiretamente, pois as vezes eram emprestados pra fazer serviços pra outro senhor, em outro sítio.
– Sim, e faziam de tudo. Desde marcenaria, serralharia, sapataria, venda de produtos e até prostituição. Juntavam o que arrecadavam para depois entregar ao seu senhor, quem não cumpria a cota sofria castigos. Fugir era difícil, a polícia estava sempre à espreita.
– Esse sistema escravocrata deixou marcas profundas na sociedade brasileira, e até hoje a sociedade padece males causados pela escravidão de séculos atrás. Sem falar que existem pessoas vivendo em condições de escravidão até hoje, o que é terrível.
– Parafraseando Carolina Maria de Jesus, a escravidão moderna é a fome e falta de um lugar pra habitar. E a maior parte das pessoas que vivem nessa situação de penúria não é branca. Tudo isso está baseado no racismo.
– Sim, o racismo é a principal motivação pra exterminar e escravizar outros povos, que pertencem a grupos diferentes dos escravocratas.
– Boa galera, acho que é isso. Temos base pra fazer nosso trab, vamos pra casa descansar e começar a colocar tudo no papel. Acho boa a ideia de usar essa frase de Carolina como epígrafe no nosso trab, e vamos fazer uma revolução.
– Isso! Valeu, ferinhas! Estudar com vocês é muito mara!
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